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E a fã sem nome explico: 'as flores não se tocam,
Vivem prá si
E pros passarinhos e pro vento' "
O disco é de 1988. E não vou tecer maiores delongas sobre
Ideologia. É o melhor disco de Cazuza; e digo isto sem haver ouvido todos os outros, e sem ser especialista neste artista. É um disco redondo, todas as músicas são excelentes (talvez com a única exceção de
Guerra Civil, que é apenas ótima, e é, por uma "coincidência" intrigante, uma parceria com Ritchie). E também me arriscaria a afirmar que, talvez, seja um dos melhores discos, senão de toda história da música brasileira, mas com toda certeza da década de 80.
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De manhã cedinho o sangue escorre:
foi por amor."
Cazuza enquanto poeta (da música, pois sabemos que ele também possui muitos escritos não musicados, que infelizmente não conheço) está em sua melhor forma nesta obra. E, enquanto ícone de uma geração, é seu auge: o lp contem "apenas" três dos seus maiores sucessos e também das canções mais marcantes daqueles tempos:
Brasil, da qual nem precisa falar muito, estou certa ("Não me convidaram/prá esta festa pobre...");
Faz parte do meu show e
Ideologia (que considero mais contemporânea que nunca nestes dias de desilusões petistas, hehehehe).
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Estranho teu cristo Rio
que olha tão longe, além,
com os braços sempre abertos
mas sem proteger ninguém"
Lado AIdeologia - Não há muito que se dizer sobre essa música. Eu, sinceramente, considero o hino de uma geração: aquela da transição entre os loucos anos 60/70 para esta realidade esquisita do mundo atual em que todas as alternativas políticas ou existenciais sumiram. Restou apenas a possibilidade de se ser capitalista, tecnológico, urbano, internético, ou enlouquecer. Aí o Cazuza vem e grita (ele que não era muito de ideologias, heheheh, porque não precisava, nasceu com uma, a ideologia anárquica-extrema da liberdade):
"IDEOLOGIA, EU QUERO UMA PRÁ VIVER!". A canção é rasgada, o instrumental é cortante, Cazuza traz o tom perfeito (raivoso e... sensual!) para esta música de protesto feita em um tempo em que música de protesto já saira de moda...
"Os meus sonhos
foram todos vendidos
tão barato que eu nem acredito"Boas Novas -
Boas Novas é também uma canção testemunhal, mas o depoimento é mais pessoal. Foi a declaração "oficial", em contexto de poesia e música, da certeza que Cazuza tinha de sua morte, pelo que contatara com ela em seu longo sofrimento de aidético. "
Eu vi a cara da morte e ela estava viva". Apesar disso a canção é dançante; é quase tudo Rock´n Roll, aliás, neste disco, com poucas exceções. Mas com tanta poesia transbordando, fica difícil mesmo dançar.
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E farei
das tripas coração
do medo minha oração
prá não sei que Deus 'h'
da hora da partida,
na hora da partida
a tiros de 'vamos prá vida'.
Então vamos prá vida!"O Assassinato da Flor e
A Orelha de Eurídice - Falarei conjuntamente destas duas canções, porque são irmãs, em minha opinião, o que explica o “estarem” muito bem ali juntas, nas raias do vinil. Ambas da autoria exclusiva de Cazuza; além dela, neste disco, apenas
Boas Novas. Não me arrisco a declará-las as melhores faixas porque seria responsabilidade demais em uma obra deste
porte, mas que chegam perto de ser, chegam. São, possivelmente, as minhas prediletas, que mais me tocam o coração, embora seja enlouquecida por
Blues da Piedade e
Minha flor, meu bebê. São músicas muito pessoais, em que a veia poética de Cazuza mais despreocupadamente emerge, naquela característica própria dos verdadeiramente poetas, como descreve Drummond em,
A Procura da Poesia: "
Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres: Trouxeste a chave?". Não há que interpretá-las, descrevê-las, decifrá-las, destripá-las, mas apenas sorvê-las. E aqui ainda não se perde a linha Rock´n Roll que mesmo tendo namorado a bossa nova e a MPB jamais Cazuza abandonou. É diferencial o arranjo de
A Orelha de Eurídice pela presença de um alucinado violino que atravessa a canção em ritmo inatingível.
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Flores são flores
vivas num jardim
pessoas são boas
já nascem assim"
Guerra Civil - Eu posso safar-me deste comentário? Não é uma música ruim, porém se perde na imensidão de qualidade desta obra...
Brasil - Nossa, esta música fez sucesso demais (ainda faz). Lembram em
Vale-tudo - a novela global, com Regina Duarte, considerada um marco da televisão brasileira dos anos 80 -, como ela casava perfeitamente à trama e ao clima da novela? Quando começava a tocar na abertura eu corria para a sala. E esta letra é descaradamente, brasilisticamente realista, e como é atual. Vejam a frase: "
quero ver quem paga prá gente ficar assim". É também uma declaração de amor ao país, vocês não acham? E há samba, bateria, o arranjo é show. Demais.
Lado BUm Trem para as Estrelas - Uma parceira com Gilberto Gil que foi tema do filme homônimo. Uma canção sobre o Rio, sobre a gente pobre do país, sobre nosso país, resumidamente. E bela, muito bela. Não é Rock-n Roll, mas ainda é o melhor de Cazuza.
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É que agora está chovendo uma chuva sem vento
e a meia hora ventava,
vamos fugir prá dentro"
Vida Fácil -
Vida Fácil é deliciosa, sarcástica, e provavelmente há uma historinha por trás dela, que desconheço. Cazuza era filho de um produtor da música, conhecia todas as tribos cariocas, e esteve dentro do viciado ambiente das artes de nossa aldeia. É disso que a música fala, sobre este meio. Cazuza dá suas garfadas nas convenções, mesmo as mais ocultas...
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Big boss
tua mão aberta enobrece
dignifica
nós que sonhamos em espécie"
Blues da Piedade - Considero este
blues uma canção feito para a posteridade, que pode constar em qualquer bom almanaque da música brasileira. Se me perguntassem quais seriam as 100 melhores músicas de todos os tempos,
Blues da Piedade estaria dentro, com absoluta certeza. Intrigante como é suave e preciso o canto de Cazuza aqui, mescla-se com maestria a guitarra, piano e bateria do arranjo. E é um
blues autêntico, além de ser puro
Frejat (seu parceiro nesta canção, outro que idolatro, salve salve).
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Pra quem vê a luz
Mas não ilumina suas minicertezas
Vive contando dinheiro
E não muda quando é lua cheia"
Obrigado - Uma poderosa canção de amor desfeito, com um momento Rock-n Roll maravilhoso. Não sei como não fez sucesso. Talvez por ser excessivamente mordaz.
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Pelos dias de cão, muito obrigado
pela frase feita
por esculhambar meu coração antiquado e careta"
Minha Flor, Meu Bebê - Canção fantástica, açucarada, deliciante e deliciosa, swingada. Também não consegui descobrir como não virou
hit. Adoro-a desde sempre, sempre, amém.
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Que prazer mais egoísta o de cuidar de um outro ser
mesmo se dando mais do que se tem prá receber"
Faz Parte do Meu Show - Essa balada bossa-nova tocou tanto que enjoou, diferentemente dos outros dois
hit parades deste disco (é o mal das baladas). Mas continuou linda, ainda que enjoativa.